Do I contradict myself? Very well then I contradict myself, (I am large, I contain multitudes.) W.W


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quinta-feira, 9 de junho de 2011

Para a Loucura

Saímos de casa as 6:30 da manhã. Eu nunca tinha ouvido falar de Barbacena antes de a Laura começar a desenvolver sua pesquisa sobre a reforma psiquiátrica no Brasil. Ela vinha falando disso a meses, da cidade e do Museu, de como os loucos eram tratados , citando barbaridades e números expressivos. Mas nada me chamou atenção. Quando pessoas viram estatísticas que viram números eu acabo perdendo o interesse. Ela convidou várias pessoas para irem nessa viagem dela, eu e o Maurício fomos os únicos que nos dispusemos. Ele só queria pegar a estrada com alguns amigos e viver qualquer fragmento de aventura, eu não detinha intenção nenhuma além de ajudar uma amiga. Acho que é geralmente nesses dias, em que a gente não pretende, que a vida realmente acontece. Despretensiosamente, às 9hrs da manhã, chegamos os três ao Museu da Loucura, Barbacena, 170 Km de Belo Horizonte. 

 O termo Loucura foi banalizado e até ridicularizado por seu uso indiscriminado. Porém, a face da Loucura que conhecemos em Barbacena não é engraçada e nada tem a ver com felicidade. O Hospital Psiquiátrico passou a funcionar como Hospital Colônia em 1934, a partir de então milhares de excluídos de todas as partes do país foram levados para Barbacena. Misturavam-se loucos, alcoólatras, viciados, gays e inconvenientes. Durante seus mais de 40 anos de funcionamento cerca de 60 mil pessoas morreram nos pavilhões do Hospital Colônia, números de guerra. Alguns jornalistas chegaram a usar as palavras holocausto e Barbacena na mesma frase. Comparação essa que não se baseia apenas no número de mortos, mas nas condições às quais essas milhares de pessoas foram obrigadas a viver. Vivemos nós, em um mundo no qual os normais foram capazes de trancar, esquecer e deixar a mercê da própria sorte seus doentes.

No museu fomos proibidos de circular pelo terreno do Hospital e visitar as demais instalações. Não que sejamos muito corajosos ou impetuosos, mas essa proibição não nos deteve. Surtiu aquele efeito comum a proibições que é a vontade de fazer exatamente o contrário.  O primeiro lugar em que paramos foi a Unidade de Internação de Agudos, com poucos argumentos conseguimos convencer a enfermeira chefe a nos guiar por um breve tour. Ela explicou um milhão de coisas sobre a reforma psiquiátrica e como são os métodos e tratamentos hoje. Eu não ouvi uma palavra. Dona Maria estava cantando e dançando no pátio. Eu acompanhava seus movimentos estranhos pelas janelas de um extenso corredor, a dança triste de uma bailarina louca. Ela olhou pra mim e se aproximou da janela, um olhar tão forte que quase cortava, que dizia que a vida dói e que a dor mata. Aquela mulher não estava viva, não por inteiro, uma parte dela já havia morrido, a outra dançava .

Saímos do Centro de Internação e continuamos a andar, não muito longe, nos deparamos com um pavilhão abandonado. Mato até a cintura, nenhum rastro, há um bom tempo ninguém entrava ali. O Maurício abriu caminho no mato e se esforçou pra ver o que havia do outro lado daquelas janelas altas. Entramos no pavilhão, um lugar sombrio, silencioso. Longos corredores escuros iluminados apenas pela luz amarela que saía das poucas janelas. Paredes e grades deterioradas pelo tempo gritavam em silencio a dor de pessoas deterioradas pela vida.  Impossível não imaginar todas elas ali, amontoadas, as mãos pelas grades, a sujeira, a doença, os choques, o choro. Só não vimos nada de fato porque a vida não é um filme de terror holliwoodiano.

O que mais me emocionou foram as paredes. Muitos eram analfabetos, mas os que sabiam escreviam, prova irrefutável de que eram humanos. Dizer-se é uma loucura comum dos homens. As paredes estavam cheias de pedidos de socorro, devaneios sobre Deus e juras de amor. Em uma delas “Todos nós nascemos chorando, sabendo que um dia vamos sofrer” (1986) Quanta poesia, quanta consciência, em um sujeito que não sabia a diferença entre B e f.  Havia uma energia forte, pesada, que misturava medo, tristeza e náusea. Um dos últimos cômodos, uma solitária, era o único em que as janelas foram tampadas. Não ousamos colocar os pés dentro desse quarto, eu sentia arrepios da porta. Na parede estava escrito de branco em letras garrafais: César do cabelo loiro. Era como se César ainda estivesse ali sem ver a luz do sol, atormentado, arranhando paredes, pobre alma com nome de imperador. Também não ouso escrever muito a respeito, sinto que estou falando de uma coisa que desconheço, que é espiritual, místico, e essas coisas não foram feitas pra virar palavras, ao menos não por mim.

Nada mais insano que acreditar em Deus vivendo nessas condições e obviamente Deus estava em todas as paredes, em orações tortas, em preces doidas, confusas e sinceras. Nada mais insano que acreditar no Amor vivendo nessas condições. A maioria era abandonada pela família, louco ou não. Eram acima de tudo não amados, o que certamente não os impedia de amar : “Eu amo a Rosa”, “Eu te amo”, “Satã e Sandra amor demais” , “Quem ama sofre, quem sofre luta, quem luta vence”. No entanto são insanidades tão normais, quantas vezes não driblamos nossos problemas inventando amores para nos distrair, quantas vezes temos fé em Deus por que é a única coisa que podemos ter? No último dos cômodos, encontramos uma poesia, o Maurício tentava decifrar mas foi interrompido por um vento forte que fazia barulho com as arvores, quando ele parou o vento também calou , nós não continuamos. Não entramos ali por coragem, entramos por curiosidade.

Saímos do pavilhão carregados de sentimentos mórbidos e decididos a procurar pessoas vivas. Conversando com funcionários tomamos conhecimento de um sistema do governo federal de Residências Terapêuticas, que são espalhadas pela cidade. Nessas, os doentes recuperados, tratados e corretamente medicados, vivem autonomamente , trabalham, estudam, cozinham, cuidam da casa e andam livres pelas ruas. Saímos pela cidade a procura dessas pessoas, mas não é tão fácil reconhece-los quanto parece. Quando você procura um louco todas as pessoas parecem loucas, porque em certa medida também são. Num centro de convivência da prefeitura conhecemos e conversamos com três homens que participam desse programa, Betinho, José Ângelo e José Gregório.

Betinho perdeu a memória, chegou a Barbacena andando pela estrada, sem saber de onde vinha ou para onde ia, sem saber o próprio nome. A sua Loucura é saber menos quem ele é do que a maioria sabe de si. Lembrou, ou inventou o nome com o tempo, mas não quem foi seu pai, sua mãe, se teve filhos, do que brincava na infância, uma folha em branco. No entanto, seus olhos castanhos, vazios, são felizes. Brilho eterno de uma mente sem lembranças. José Ângelo, perdeu-se entre a realidade e o sonho, chegou a Barbacena dentro de uma cesta que foi jogada em um rio no Iraque, a cesta atravessou não sei quantos mares até encontrar um córrego que passa pela cidade. No Iraque trabalhou durante anos, sofreu por maus tratos e sofreu de saudade. Nas arábias não gostam de preto e em Barbacena não tem general. José Gregório é o mais enigmático dos três, não fantasia, não se esquece, não olha nos olhos. Ele viveu cerca de dois anos no Hospital Colônia, de onde prefere não se lembrar. Em um esforço cuidadoso fizemos com que ele falasse um pouco daquela época. Foi pra lá menino e viveu situações de violência e dor, narrou brigas entre os internos, as injeções, as grades, as grades... Mas ele não quer falar mais disso, ele gosta de falar de agora, da sua casa, dos seus amigos, dos relógios e radinhos que compra no camelô.

Agora essas pessoas têm o direito de ser loucos, em 2001 foi aprovada a lei antimanicomial que garante a dignidade e o tratamento correto dos doentes mentais. Eles andam hoje em meio aos normais, e cantam e dançam e pintam e gritam e se calam, como todos. A Loucura é bonita como uma música triste, trata-se geralmente de um sujeito que parte em uma viagem qualquer e não volta mais, e se perde em meio aos seus devaneios, paranóias e ilusões. Como trancar então um homem perdido?  Obrigá-lo a permanecer quando ele não sabe o seu lugar. Como trancar um homem que pode voar? Perdidos estamos todos, acredito eu, mas só os loucos se deram conta disso, daí o desespero, o sonho, a dança. E por mais que sofram, que tenham sido incompreendidos e maltratados, eles ainda estão mais perto da verdade que os normais. Não que a verdade seja o objetivo, não que exista objetivo,  eles não querem nada além de liberdade e um pouco de amor.





Eu amo a vida, mas ela não me ama.
Coração infeliz de quem está afim
De regenerar um dia ,mas não sei
A hora, o minuto, mas só
Espero , que esse dia
Não seja tarde demais.
                                                                                                                                          N.G 1986

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Alucinação

Eu queria falar de amor, ou da cor da manhã, da luz do ocaso, do sorriso de alguém , ou do que acontece quando uma garota passa, mas eu não consigo. Eu queria descrever a beleza de coisas simples, como o olhar de uma criança, uma música que me faz chorar, ou um barquinho deslizando pelo mar, mas eu não posso. Minha Bossa Nova virou Tango argentino.

A sua falta tomou conta de mim, agora eu estou cheia de tudo o que eu não tenho,tudo em mim é ausência, nada existe, qualquer coisa pretende. Eu vejo um mundo e não consigo tocar em nada, sou eu ,ou tudo é fantasma? Mas coisa alguma morreu, estou cercada por fantasmas de coisas que nunca nasceram.Ás vezes acredito estar enlouquecendo, então tento me segurar na verdade, me agarrar às coisas reais, mas dói tanto e meus braços não são fortes o suficiente.

Eu tento sentir emoções intensas, me apaixonar, odiar alguém, beber muito, dançar, sangrar, chover, qualquer coisa que faça eu me sentir mais viva. Mas nada adianta, eu estou desaparecendo      p o u c o  a  p o u c o , as pessoas já não conseguem me tocar, e o que elas vêem com certeza não sou eu. Dentro em breve nós dois não existiremos, juntos.

Satisfaction

Não é minha culpa pai. Eu nasci com essa doença,uma fome crônica,que quando não satisfeita consome a mim mesma. Eu tenho fome pai, eu quero tudo,muito,intenso,aqui e agora.Sei que você pensa que isso é estupidez da minha idade, e talvez até seja,mas pra mim está tudo certo como está.

Eu vou comer o mundo mãe, eu vou devorá-lo e nunca mais vou dormir, não quero fechar os olhos um só segundo. Eu quero ver o fogo, as crianças, as luzes, os casais, a dor, o êxtase, a cidade, tudo, tudo e tudo nunca vai ser suficiente.

Eu vou dançar no meio da rua sem parar, sem parar, sem parar, vou rodar a minha saia até que todos os planetas orbitem ao meu redor.Você realmente quer saber o que eu sinto mãe? Então escute o meu grito, mas cuidado, uma vez ouvido ele nunca mais vai parar de soar, até fazer você gritar. Escuta o meu grito mãe,o meu pavor, a minha paixão, o meu caos, a minha luz.

Não se assuste pai, eu sou só mais uma menina maluca no meio da multidão.Não se preocupe mãe, eles não vão falar mal de mim, eles nem podem me ver.